sábado, 22 de janeiro de 2011

A memória

A memória é essa claridade fictícia das sobreposições que se anulam. O significado é essa espécie de mapa das interpretações que se cruzam como cicatrizes de sucessivas pancadas. Os nossos sentimentos. A intensidade do sentir é intolerável. Do sentir ao sentido do sentido ao significado: o que resta é impacto que substitui impacto - eis a invenção.

Ana Hatherly, in 'A Cidade das Palavras'

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Mariza - Chuva

Ilumina-se a Igreja por Dentro da Chuva

Ilumina-se a Igreja por Dentro da Chuva

Ilumina-se a igreja por dentro da chuva deste dia,
E cada vela que se acende é mais chuva a bater na vidraça...

Alegra-me ouvir a chuva porque ela é o templo estar aceso,
E as vidraças da igreja vistas de fora são o som da chuva ouvido por dentro ...

O esplendor do altar-mor é o eu não poder quase ver os montes
Através da chuva que é ouro tão solene na toalha do altar...

Soa o canto do coro, latino e vento a sacudir-me a vidraça
E sente-se chiar a água no fato de haver coro...

A missa é um automóvel que passa
Através dos fiéis que se ajoelham em hoje ser um dia triste...
Súbito vento sacode em esplendor maior
A festa da catedral e o ruído da chuva absorve tudo
Até só se ouvir a voz do padre água perder-se ao longe
Com o som de rodas de automóvel...

E apagam-se as luzes da igreja
Na chuva que cessa ...

Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"

domingo, 9 de janeiro de 2011

Descoberta

Ontem, numa visita ao Clube literário do Porto, descobri num folheto perdido uns poemas de uma autora de quem nunca tinha ouvido falar mas cujos poemas me agradaram. A autora,Judith Teixeira, nasceu em Viseu em 1880 e apesar de ter deixado algumas obras publicadas, parece ter ficado até hoje na obscuridade. Aqui fica um dos seus poemas e duas ligações com mais informação.

http://wwweuropa.blogspot.com/
http://www.arlindo-correia.com/judith_teixeira_1.html

Onde vou?



Onde vou eu, onde vou?

Já nem sei donde parti…

Se eu mesma não sei quem sou!

Achei-me dentro de ti.



Eu fui ninguém que passou,

eu não fui, nunca me vi…

Fui asa que palpitou –

Eu só agora existi.



Negra dor espavorida

ou saudade dolorida

eu fui talvez no passado…



Sou triste por atavismo…

Não há ontem no cuidado

em que em cuidados me abismo.



Inverno – Hora Ignorada

1922

Regresso?

Meses e meses sem escrever uma única palavra, sem publicar uma única fotografia, sem qualquer registo de sentidos ou de memórias.
Talvez fosse por cansaço ou ainda por falta de coisas que merecessem lugar no labirinto. Talvez fosse porque me perdi, mas isso agora significaria que me tivesse encontrado. A verdade é que aqui estou de volta ao fim de um ano de silêncios, perdas, lágrimas e recomeços.
Sinto falta de alguma coisa que não sei bem o que é e muito menos sei se é aqui, neste recanto da escrita que vou descobrir. Só sei que me agoniza a rotina do trabalho, o sufoco do quotidiano, a pequenez dos outros que se faz minha também,só sei que preciso de fazer alguma outra coisa que seja só minha e que o faça pelo prazer de o fazer, sem obrigações.

Foi na doçura com que me ouves e me lês que encontrei vontade de regressar. Para ti, meu ouvinte ideal, leitor ímpar, amante nos versos e nas curvas do corpo, foi para ti também que regressei.