quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

“ Ver muito e ler muito aviva o engenho do homem."
Cervantes

No passado Domingo, visitei a casa onde nasceu o escritor espanhol Miguel Cervantes Saavedra . A casa-museu com o seu nome foi construída no lugar onde se julga ter estado a casa original, ainda que dessa estrutura resistam apenas um mural e um poço. O mobiliário e a decoração da casa reconstituem o que seria uma casa de uma família abastada da época, mas sem qualquer relação com a família do escritor.
Numa das salas, encontram-se edições antigas e valiosas de D. Quixote de la Mancha traduzidas nas mais variadas e estranhas línguas. Surpreenderam-me as de Esperanto e numeração criptográfica. Confesso que a casa ficou um pouco aquém das minhas expectativas, esperava que a casa museu do escritor espanhol por excelência tivesse mais para oferecer. Mais informação sobre o próprio e sobre a época, sobre o tempo que passou em Alcalá de Henares e, claro, sobre a sua obra.
A cidade, por outro lado, impressionou-me bastante. Tem a Universidade mais antiga de Espanha, e eu que esperava que fosse Salamanca ou Santiago, e os edifícios cor de argila antigos espalham-se pela parte antiga da cidade dando-lhe um charme académico, quase místico. Naquelas ruas estreitas, percorridas por ciprestes, escondem-se séculos de histórias e páginas de História. Alcalá é a cidade das três culturas e isso sente-se, lê-se e vê-se nas ruas. Em Alcalá encontraram-se o Judaísmo, o Islamismo e o Cristianismo e há pela cidade presença de povos, crenças e estilos arquitectónicos distintos.
Mas não é sobre Alcalá que me apetece escrever. É sobre Cervantes. Ou melhor, sobre a leitura. Se é verdade o que diz, que é na leitura e na observação que o Homem desenvolve a sua inteligência e talento, então o que dizer dos madrilenos que lêem em todo o lado? Mas o que lêem afinal os madrilenos? Numa cidade do tamanho de Madrid, é inevitável passar-se uma boa parte do dia no autocarro, no comboio ou no metro. A mim toca-me o metro. Num dia só passeio pela linha laranja, azul e castanha várias vezes em diferentes horas e sentidos. Não o faço com gosto mas o que gosto mesmo é de observar o que fazem os madrilenos enquanto se deslocam de subterrâneo: lêem.
Há um ano que observo e atrevo-me a dizer que os madrilenos só podem ser extremamente engenhosos. No metro lê-se em pé, sentado, entre compras, apertado por outros passageiros e até sentado no chão da carruagem. E o que se lê? Lêem-se os jornais breves que se lêem em vinte minutos e que se deixam no assento para o próximo passageiro. Em vinte minutos ou menos fica-se a saber o que vai no mundo e em Madrid. As revistas cor-de-rosa também abundam nas mãos de muitas passageiras. É que em Espanha, interessa muito a vida dos famosos. A indústria do rumor ‘pink’ é gigante, assustadora e agressiva. Consomem-se escândalos, infidilidades, amores, viagens e sonhos de famosos de forma voraz. E não só em revistas, a televisão também o explora mas disso falarei noutra altura. Lê-se quase sempre em castelhano, autores nacionais e estrangeiros, e quando um título está em inglês, francês ou alemão o leitor também parece estrangeiro. Quase todos os dias descubro um manual diferente. É que no metro também se estuda e agora abundam os manuais para a ‘oposiciones’, um exame a que qualquer candidato a uma posição pública tem que se submeter. Também há os leitores tímidos ou reservados que escondem o que lêem sob uma encadernação rápida com a folha de um jornal. Às vezes lê-se a Bíblia, outras o Corão. No outro dia cruzei-me com o nome da Virginia Woolf e sorri discretamente. Foi a primeira vez que vi alguém ler a ‘minha’ autora no metro.
Às vezes, os leitores mais entusiasmados sobem as escadas rolantes que os levam à superfície de livro aberto afastando o olhar apenas para confirmar a ausência de obstáculos. A verdade é que com o tempo que a cidade nos rouba, a única maneira de o recuperar é aproveitar as deslocações para mergulhar noutras histórias que não as reais de uma cidade que nos devora. Naturalmente, nem tudo o que se lê no metro poderia fazer parte de uma ‘lista de autores a não perder’. No entanto, parece -me mais preocupante não ler de todo, do que fazer escolhas pelo ‘top’ Casa del Libro.
E eu, o que leio agora no metro quando não estou a ver o que lêem os outros? Um livro de Camilo José Cela comprado num alfabarrista em Alcalá: Café de artistas y otros papeles volanderos. É a minha primeira incursão literária em castelhano. E que me avive o engenho!

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